quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Patrícia Verdugo, jornalista chilena, no Roda Viva

"A operação da "Caravana da morte", propriamente, em síntese, em que consiste? É a primeira pedra da ditadura do general Pinochet ao dar o golpe militar. Essa primeira pedra consiste em uma missão militar que ele entrega a um general do Exército de muito prestígio e de muito poder no Chile naquele momento, o general Sergio Arellano Stark. A missão militar, que vai a bordo de um helicóptero Puma percorrendo o país, tem dois objetivos: fazer com que a sua ação terrorista paralise a população civil - que comprovará, desde esse dia, que no Chile não há mais Deus, nem Lei, que começa a guerra suja. O segundo objetivo é alinhar em um bloco compacto de comando as Forças Armadas, com a mensagem de que também não existe a lei militar, nem o que lhes foi ensinado nas escolas militares, relacionado aos acordos de Genebra sobre a proteção de prisioneiros políticos em tempo de guerra. Porque Pinochet havia criado um decreto de que, para efeitos da Justiça Militar, estava decretado tempo de guerra. Não havia guerra. No Chile nunca houve guerra. Mas ele decretou tempo de guerra para efeito dos procedimentos judiciais. Então, se o senhor era julgado e era declarado culpado porque, em sua casa, no momento em que foi detido, havia um revólver, e era condenado a um ano de prisão, por ser tempo de guerra, em vez de um ano, eram dois anos. A pena era dobrada, tornava-se mais pesada, mais grave. A missão militar consistia em tirar da prisão, em cada cidade, prisioneiros políticos cuja maioria havia se entregado voluntariamente às autoridades militares. Alguns estavam sendo submetidos a um Conselho de Guerra, outros estavam esperando processos, outros já haviam sido condenados a penas que iam... Por exemplo, o jornalista e advogado [e militante comunista] Carlos Berger havia recebido uma pena de sessenta dias de prisão. Havia outros com penas de dez anos de prisão. Mas isso não importava. A missão militar tirava-os da prisão, massacrava-os... Quando digo massacrar, quero diferenciar de fuzilar. Uma pessoa, quando é fuzilada, supõe-se que a ponham junto a uma parede, coloquem uma venda sobre seus olhos e disparem, esperamos, no coração, para que, com um disparo ou dois, morra. Nesse caso, os corpos que foram encontrados têm marcas de trinta, quarenta tiros, cada um, além das feridas feitas com o corvo, uma faca curva usada pelos comandos militares. Os corpos ficaram despedaçados. O general Joaquín Lagos, em Antofagasta, foi o único que não aceitou a ordem de enterrar clandestinamente esses corpos despedaçados. Ele ordenou aos médicos militares e aos médicos civis que montassem uma equipe para que, com linha e agulha, costurassem os corpos para poder armá-los e colocá-los em ataúdes. Isso para que, quando as famílias abrissem o caixão para comprovar a identidade, o espetáculo não fosse tão chocante, tão horroroso. Foi isso o que fez essa missão militar sob as ordens do general Pinochet, que deixou uma impressão digital nesse caso que o está levando a processo."

"Todos os dias havia proclamas militares em cada cidade, dizendo: "Pelo bando militar número 48, número 96, ordena-se aos seguintes cidadãos apresentar-se ao comissariado ou regimento mais próximo. “Número 1: Aguirre, Pedro. Quarenta...” Qualquer sobrenome, até chegar à letra z, até chegar a Zapata, Jorge. O fato é que em todos esses primeiros dias, a maior parte dos cidadãos convocados apresentava-se voluntariamente. É assim que acontece a "Caravana da morte", o massacre desses prisioneiros que confiaram na legalidade. O Chile é um país interessantíssimo em termos do seu respeito à lei. [Gabriel] García Márquez [(1928-), importante escritor colombiano, jornalista, editor e ativista político. Cem anos de solidão (1967), seu livro mais conhecido, é considerado uma obra-prima da literatura em língua espanhola], quando voltou ao Chile, em 1990, quando começou a transição, dizia que o Chile era o único país que [ele] conhecia onde as leis são campeãs de vendas, oferecidas nas ruas. É assim. Quando se vai ao centro de Santiago, há vendedores de rua gritando: "A última reforma do Código Trabalhista"! E todo mundo compra. "A última reforma tributária”! "A nova lei processual penal"! É interessantíssimo. As pessoas precisam ter a Lei em casa. É impressionante. Portanto muitos cidadãos, a maioria dos cidadãos convocados acreditou que realmente respeitava-se a Lei. Porque o golpe militar, na primeira proclamação, disse que o objetivo das Forças Armadas, ao tomar controle da nação, era reconstituir o respeito pleno à Lei e à Constituição que o governo da Unidade Popular havia desrespeitado, quanto ao direito de propriedade. É só isso. E muita gente acredita e entrega-se voluntariamente. No caso dos estrangeiros, até o dia de hoje, o pinochetismo... As pessoas que estão ao redor de Pinochet, uniformizadas e civis, falam, por exemplo, dos dez mil guerrilheiros cubanos que havia no Chile. Cada vez que me falam do assunto, digo: "perdão, e quando saíram do Chile? Onde estão as fotografias da notícia de quantos aviões tivemos de dispor para tirar do Chile dez mil guerrilheiros cubanos? Ou mataram todos? Como é que Cuba não protestou por dez mil cidadãos cubanos mortos e desaparecidos"? Inventa-se qualquer coisa. Mas a verdade é que o povo chileno, na maioria, tinha um sentimento de grande alegria pelos estrangeiros e latino-americanos que estavam no Chile. Porque não é só a questão dos jovens da América Latina e do mundo que decidiram sonhar, junto aos chilenos, com a construção do socialismo na democracia. Não se trata só disso. Há uma tradição histórica do Chile, como república, de receber os latino-americanos, sobretudo do mundo intelectual: estudantes, acadêmicos de toda a América Latina. Cada vez que em seus países há um golpe de Estado, vão para o Chile procurar asilo e continuar os estudos. Creio que o presidente Cardoso esteve no Chile desse modo, não é? Mas está cheio, em todos os lugares aonde vou encontro sempre ministros, ou presidentes ou reitores de universidades que passaram pelo Chile em algum momento em que seus países sofreram uma ditadura. Chile tinha uma tradição de abrir os braços e receber a todos os que fossem lá para se refugiar. Porque o nosso grande amparo não era ter êxito econômico, sempre fomos um povo pobre. A nossa graça era a cultura. Pobre, mas culto. Tão culto que tem dois prêmios Nobel de poesia [Em 1945, Gabriela Mistral recebeu o Nobel d literatura; em 1971, foi a vez do poeta Pablo Neruda]. Esse era o grande orgulho do Chile. Não o de ter um crescimento de 7% ao ano. Nem o de ter equilíbrios macroeconômicos perfeitos. Essa não era a idéia. O nosso grande orgulho era Pablo Neruda e Gabriela Mistral."

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